Publicado em 28/05/2022 | 166 Impressões | Escrito por Gilmar Ribeiro

As Sombrias Ruínas do Casarão Abandonado

*As Sombrias Ruínas do Casarão Abandonado

      O casarão ficava em uma ampla várzea de nome Boqueirão do Lajedo Alto e fora construído na parte mais elevada –– de modo que se avistasse além de seus limites. À volta, morros, alguns elevados, outros descendo mansamente até encontrar o enredado de urdidura da mata que recobria os taludes das encostas; cuja vegetação, como uma ínvia murada, servia para isolar ainda mais de uma possível ameaça externa.

      Na parte mais elevada da várzea, do lado do casarão, um riacho despencava ruidosamente espumoso do alto de uma das encostas; em seguida, se esgueirava pela base dos morros até encontrar as águas de uma das muitas lagoas várzea abaixo, todas pejadas de juncos e taboas. Além da várzea, já bem adiante, por entre matagais agressivos e cipoais, as águas seguiam mansas, formando corredeiras e discretas quedas d’águas; mais à frente, rolava mais encorpado e ligeiro um braço escuro de água, espremido entre depressões tortuosas e acidentadas. Bem além das depressões, a terra se abria e se mostrava mais acolhedora; –– que bem antes da chegada do homem branco, já havia ali uma aldeia de índios.

      Nos tempos do casarão, os proprietários travaram amizade com esses nativos, dos quais tomavam parte de suas provisões de mandioca, milho, banana e caça, em troca de miçangas, espelhinhos, facas, facões e baldados adornos; os índios chamavam o lugar, onde edificaram o casarão, de “Vale do Morro Assombrado”, ali não entravam; por isso faziam questão de se manterem afastados.

       Há mais de dois séculos, quando a construção do casarão teve início, o senhor teve de importar trabalhadores de outra parte do país. Os índios até então não conheciam o negro, tanto que com eles nunca travaram amizade. Quanto às outras tribos, os habitantes do lugar não se comunicavam, pois eram inimigos tradicionais. Como de fato, a construção demorou tanto tempo que antes das poderosas paredes do casarão ficarem totalmente pronta, os trabalhadores negros, um por um, haviam todos morridos. De modo que os herdeiros vieram a terminar a “fortaleza” –– assim também chamavam o casarão desde o início ––, com outra leva de negros, agora comprados no recôncavo baiano; deste mesmo modo, ficaram por terminar a morada dos escravos e a parada dos peões bruaqueiros, mascates e visitantes eventuais, deixando-as incompletas, cegas e escancaradas, sem cobertura, voltadas para o enorme lajedo, anexo ao enorme morro, que fazia fundos com o casarão.

      Um dia, não há muito tempo, todos deixaram o lugar. Primeiro os índios, em seguida os herdeiros do casarão, ninguém soube para onde foram, e ninguém se motivou a perguntar. Há muito tempo, ladrões retirou do sólido casarão tudo que era de valor e que fosse possível de carregar. Isso em meados do século dezenove. Depois, já no século vinte, os soldados da “volante” –– tropa ligeira, criada para perseguir cangaceiros –– fizeram dela seu quartel-general e, tais como os cangaceiros, acenderam fogueiras nos amplos quartos, sala e copa; que depois disso, ficaram as paredes com o negrume dos fornos de cozer telhas e tijolos. Ali, nada mais restava, tudo que havia nela se fora, parecia que ninguém nunca pôs os pés no secular casarão.

      Em redor da varanda, a vegetação se erguera, formando uma cerca viva que nem uma parede protetora; da cobertura pendiam árvores pequenas como trepadeiras e enlaçavam as cornijas das janelas, portas e do avarandado. O mato em volta vicejava, rebelde e exuberante; há muito, caminhos que atravessavam o acesso à entrada principal, não mais eram avistados, tudo encoberto por um emaranhado de vegetação rasteira, quase impenetrável.

      O abandono do casarão abriu oportunidade única de um poderoso pajé-sacaca e um tuxauariá retornasse mais forte no espírito do velho tuxaua que ali habitava. Ou seja, uma espécie de Pajé-anhé mandando no mundo. Quando os primeiros donos do casarão terminaram de construir a capela, clérigos foram trazidos para abençoar e exorcizar o local, onde permaneceram por meses; não conseguiram, porém, matar o espírito do velho tuxaua, tampouco expulsá-lo, finalmente desistiram e se foram.

      Durante décadas os donos moraram no casarão, os índios ficavam imaginando por que o poderoso Pajé-anhé, o que manda no mundo, lhes permitia ficar. Os índios diziam que ele continuava vivendo, entre os proprietários, pois o Vale do Morro Assombrado era o seu lar e jamais poderia sair.

      Os nativos respeitavam o vale, não o viam apenas como o “vale do morro assombrado”, temiam-no também como um lugar inviolável e sagrado; então, só ali era ao pajé da sua tribo permitido a entrada, em casos extremos de consulta ao espírito do velho tuxaua, para ouvir seus conselhos sobre a vida e a morte, e o rumo que todos deveriam seguir em vida.

      O espírito do velho tuxaua se movia, assiduamente, pelos cômodos do “casarão fortaleza”, uma vez que suas paredes externas eram de quase um metro de espessura. Em dos quartos, ele deitava na cama e ficava a escutar o sibilar do vento, o ar espiando cada quarto, sala, contornando as incontáveis arestas das coisas, a animação dos sons das borboletas, flores e folhas e frutos a se romperem dos talos, o tombamento no solo, os insetos em seu interminável rastejar por sobre a quentura poeirenta da terra. De súbito, erguia-se, e desfazia a cama. (O velho espírito também era chamado de Romãozinho pelos moradores do casarão, entidade zombeteira, inquieta e má que joga pedra nos telhados, areia nas janelas e assobia nas fechaduras, arremessa panelas e pratos ao longe e desfaz o que está arrumado; os moradores do casarão jamais conseguiram granjear-lhe a amizade e favores, mesmo oferecendo-lhe comida).

      Na varanda, se aboletava num banco, ali, sob o sol da tarde, ele se punha a ver as nuances de luz, a transição gradual de som e de odores, e o desfazer do dia: refletidamente consciente a sentir a desintegração da tarde e a transformação em trevas. Ao sair, antes deitava o banco ruidosamente no piso, som que ecoava por entre paredes no interior do casarão.

      Na boquinha da noite, ele escapulia para a cobertura do casarão e ficava a inspecionar o escurecimento do céu, a ouvir o rugir da cascata batendo no solo. À noite, ao vaguear, como sempre fizera ao longo dos anos, ele pairava sobre a várzea,  assumido a forma de uma onça, de um morcego, de uma coruja ou de um animalzinho noctívago, às vezes minutos ou horas, depois retornava a um dos morros onde permanecia imóvel, aguardando o nascer do sol.

      Quando os clérigos ali estiveram com o intuito de expulsá-lo do vale, ele se incorporou em um noviço, vendo-se nele. Foi uma experiência nova e rica, porém sufocante; onde pela primeira vez sentiu o quanto é vã a natureza humana. Uma estranha sensação o compeliu a permanecer no corpo do jovem hospedeiro, mas uma débil curiosidade o incitou há continuar um pouco mais e dividir essa impressão incomum. Assim ficou; o clérigo ao erguer os braços em sua oração matinal para o céu em um gesto de súplica, o espírito do velho tuxaua experimentou antagonismo, o receio de um combate com seu Deus. Horas depois, o jovem clérigo sentiu algo estranho em seu corpo, algo a incomodar-lhe, com um berro alucinado, correu para o seu aposento e se apossou de um azorrague de couro, preso à sua cabeceira, de cujas pontas pendiam lâminas de metais, e deu início a uma torturante autoflagelação. Ao terminar, se pôs a proferir uma prece, a seguir se arrastou para seu quarto e adormeceu chorando.

      O velho tuxaua não aprovara a sua experiência, incontinente se esgueirava para fora e penetrava em um pássaro noturno que passou a noite na cumeeira do casarão, se pondo a ouvir os ruídos da noite, e piando vez ou outra. Antes do amanhecer, deitou a jogar pedras no telhado.

      Nos dias seguintes, o espírito do velho tuxaua assumiu o corpo do clérigo de meia-idade. Eram três clérigos: o noviço, o de meia-idade, exorcista experiente, e o outro com mais de setenta anos, responsável pela consagração e realização da primeira missa na recém-construída capela do casarão ––, e em cada um deles foi uma sensação diferente. O exorcista, quando dormia, tinha sonhos malignos, combatia incessantes demônios, discutia, duelava com espadas, rangia dentes, soltava blasfêmias absurdas e rancorosas; por fim acordava, suplicava perdão ao Senhor, agarrava o azorrague e iniciava uma feroz autoflagelação. O mais idoso sentava e lia os salmos, quase cantando como se estivesse num templo, rezava, andava em redor do casarão e dava voltas pelo mato, até a fadiga, depois se recolhia ao seu aposento, saindo somente para o almoço ou o jantar. Em cada um deles o velho tuxaua teve percepções diferentes: a mais atormentada fora a do clérigo exorcista, com quem até se identificou, porque ele já lutara com entidades semelhantes aos que viu em sonhos do religioso.

      O abandono do casarão deixou o espírito do velho tuxaua acabrunhado, sem saber como passar seus dias, meses e anos; uma vez que por anos ele assumiu corpos e mentes dos primeiros e dos herdeiros que ali residiram. Não havia ninguém senão as mesmas criaturas que sempre viveram no  Lajedo do alto. Agora tudo voltara a ser como antes da chegada deles. Então ele tornou a penetrar nas criaturas que ali desde sempre viveram. Primeiro se pôs à prova no corpo de uma jibóia, um gato do mato, um mangangá e abelhas silvestres, vivenciando toda elas; nada eram comparáveis aos humanos com seus conflitos, dúvidas, fraquezas, amor e ódio.

      A passagem daqueles humanos no casarão abandonado fizera o seu existencial e onipresente espírito mudar de um para outro, a sentir formas de sensações as mais diferentes possíveis. Em uma noite tempestuosa, cangaceiros que estiveram ali anos atrás, vieram se esconder; –– eram sobreviventes do combate com a volante. Sentados no chão, limpavam suas armas, e se puseram a xingar os soldados da volante, era tanto ódio e medo que o espírito do velho tuxaua se sentiu embaraçado, mas enquanto os bandidos permaneceram no casarão, o espírito do velho tuxaua não os abandonou; saindo de um homem para o outro sem que isso provocasse qualquer mudança em seu comportamento de malfeitores. O velho tuxaua ficou a provar o ódio que tinham do mundo, das pessoas, sobretudo dos soldados; depois se embriagavam, dançavam e rolavam pelo chão em volta da fogueira.

      Os cangaceiros não ficaram muitos dias. Como a prever a chegada dos soldados, todos partiram açodadamente. No dia seguinte, os soldados vieram no encalço dos bandidos sobreviventes, que eram oito. O que mais desapontou o velho tuxaua era que ser bandido e ser soldado pareciam ser a mesma coisa. Mesmo assim apreciou imensamente penetrar nos corpos dos bandidos, e se viu inda mais abandonado quando tornou a ficar sozinho.

      Os bandidos, ao abandonarem o casarão, foram se acoitar além das depressões onde a espessa e agressiva vegetação atrapalhava qualquer vivente que desviasse de seu caminho e que tentasse invadir os seus domínios. Os soldados também eram conhecedores de tais armadilhas. Tanto que, antes de tomarem as ruínas do casarão, o comandante da volante estrategicamente posicionou metade da tropa muito além das depressões, lugar onde os bandidos se esconderam. Os bandidos então não puderam avançar tampouco recuar. Acuados, se viram condenados a morrerem de fome. A única coisa que tinham em abundância era água. Os soldados tinham água e mantimentos.

      Ao entardecer do sexto dia, o espírito do velho tuxaua avistou o crepúsculo banhar de vermelho; foi aí que comprovou que ser bandido e ser soldado eram idênticos. À noite, o velho tuxaua ficou sentado em uma das paredes escutando o matraquear de tiros; avançadas horas depois o silêncio voltou a imperar na ampla várzea do Boqueirão do Lajedo Alto.

      Um século depois, nunca mais ouviram falar das ruínas do casarão abandonado. O espírito do velho tuxaua,  espírito do Pajé-anhé que manda no mundo, fora sufocado pelo espírito do Pai da Mata: as ruínas, vigorosamente abraçadas, desapareceram sob o manto verde da vegetação secular e agressiva.

                   Beira do Rio, Tremedal, janeiro de 2018.    

             *Inspirado em um conto de Paul Bowles e Mitos   e     

                  Lendas Indígenas Brasileira, CÂMARA CASCUDO, Luis da.

 

                                                                 

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